COMPORTAMENTO
Você tem amigos ou apenas colegas?
‘Psicóloga explica que a diferença básica entre amigo e colega está na qualidade do vínculo’
É comum ouvir: “dá para contar nos dedos de uma só mão quem são meus verdadeiros amigos”.
“Sentimento fiel de afeição, simpatia, estima ou ternura entre pessoas que geralmente não são ligadas por laços de família ou por atração sexual”, assim o Novo Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio define a palavra amizade.
No dia 18 de abril, comemora-se o ‘Dia do Amigo’, e até mesmo quem é apenas colega acaba sendo homenageado neste dia.
Segundo a psicóloga Ana Claudia Ferreira de Oliveira a amizade é algo importante para a vida de qualquer pessoa independente da sua idade já que o ser humano sente necessidade natural de compartilhar sentimentos e ideias.
Porém muitos se questionam: como fica a amizade em tempos de internet? Segundo dra. Ana Claudia, os sites de relacionamento e de conversa instantânea, por exemplo, possibilitam que nasçam amizades que talvez não existiriam sem esse canal. Seria praticamente impossível se relacionar com alguém do outro lado do mundo sem acesso a esta ferramenta.
Porém, ela lembra que o Orkut, por exemplo, traz uma noção distorcida dos relacionamentos e que pouco tem a ver com a amizade realmente. “Ninguém consegue abarcar 500 amigos sem falhar muito com a maioria deles; além disso o outro se interessa em virar seu “amigo” pois isso também aumenta a rede dele e ele então torna-se mais sociável e bem quisto na “rede” também, completa a psicóloga.
Folha – Existe até uma data para celebrar a amizade como o ‘Dia do Amigo’. Psicologicamente falando, qual é a importância da amizade na vida do ser humano?
Dra. Ana Claudia – A amizade é extremamente importante na vida de qualquer pessoa, seja ela criança, adolescente, madura ou idosa. O ser humano é gregário por natureza e precisa compartilhar seus sentimentos, suas conquistas, suas ideias.
Amigos fazem bem à alma, ao coração e à saúde física também.
Na atualidade, com as constantes mudanças a que somos submetidos em ritmo acelerado, vivendo sempre sob o teto da incerteza do futuro, precisamos de um ponto de referência estável e confiável que possa servir de porto seguro. A amizade sincera e verdadeira pode ser o perfeito ponto de referência e segurança nesses momentos, nos ajudando a enfrentar os mais variados desafios nos diferentes ciclos da vida.
Folha – Como distinguir amigo de colega?
Dra. Ana Claudia – A diferença básica entre amigo e colega está na qualidade do vínculo.
Os amigos são mais próximos e mais presentes em nossas vidas. Essa proximidade tem a ver com intimidade. Amigos se conhecem mais profundamente e sabem mais de nosso jeito de sentir o mundo, nosso modo de nos relacionarmos com os outros, nossa forma de pensar e interpretar os fatos, nossas escolhas, etc.
A presença a que me refiro também não está necessariamente ligada à quantidade, mas à qualidade da relação. Temos colegas de trabalho, de escola, de clube, de academia, por exemplo, que encontramos às vezes diariamente, mas nem por isso, temos uma qualidade de vínculo que possa caracterizar essa pessoa como “amiga”.
Os colegas podem até saber muita coisa sobre nossas vidas porque convivem conosco, mas não são essas pessoas que tenderemos a procurar num momento de dor e alegria intensos. Queremos dividir nossas alegrias, tristezas, e intimidade com quem sentimos confiança, com quem sabemos que nos quer muito bem, que vai nos ouvir com carinho, e que vai tentar (ainda que nem sempre consiga) nos ajudar. Amigos se importam de verdade com nossos sentimentos e em como vai nossa vida. E as verdadeiras amizades são baseadas sempre no respeito à nossa singularidade e lealdade ao vínculo.
Folha – Por que é tão comum as pessoas confundirem amizade com coleguismo?
Dra. Ana Claudia – Nós podemos pensar em várias razões para essa confusão, mas a que mais me chama a atenção está ligada à ideia de “amor líquido”, trazida pelo escritor Zygmunt Bauman, que fala da fragilidade das relações humanas. Com a modernidade e as diversas demandas a que as pessoas são colocadas frente a frente em seu dia-a-dia, encontramos cada vez mais pessoas com dificuldade em se comprometerem consigo mesmas, quanto mais com seus pares. Há um temor enorme da intimidade com o outro, pois a intimidade exige honestidade para consigo mesmo e para com o outro. Não poderemos ser amigos de ninguém se não somos verdadeiros com o outro, e as pessoas temem se mostrar e serem julgadas por quem são.
Além disso, num mundo que acena com as infinitas possibilidades de conhecermos as mais diferentes pessoas, nos mais diversos ambientes, com as mais variadas oportunidades, o compromisso e o vínculo, a longo prazo, podem ser vistos como “perda” de outras oportunidades que surgiriam (e surgirão). As pessoas passam a temer o compromisso e, assim, vão mantendo vínculos menores, frágeis, como o coleguismo, e acabam por se esconderem dentro de si mesmas em profunda solidão.
Daí, temos aquelas pessoas que têm vários colegas a quem chamam de “amigos”, mas, na verdade, o vínculo estabelecido é extremamente frágil e se rompe facilmente, sendo a pessoa logo substituída por outra mais disponível.
Folha – Sempre é preciso que haja alguma afinidade para que duas pessoas se tornem amigas?
Dra. Ana Claudia – Sim, qualquer que seja ela. O fato é que uma amizade de verdade é feita com muito amor, e o amor surge e se fortalece com base nas afinidades. Essa história de que os opostos se atraem pode servir para as paixões, que são rápidas e fugazes. Mas o amor e a amizade precisam de constância, de incremento, de cuidado. E quando não há afinidade, porque vamos querer manter aquele vínculo? Sem afinidade a presença forte e constante daquela pessoa na nossa vida perde o sentido, e não havendo sentido, não há porque manter o laço.
Folha – Na infância, qual é a importância da amizade para o desenvolvimento social da criança?
Dra. Ana Claudia – A amizade é de extrema importância na infância, e em todas as outras fases da vida. A amizade é fundamental para que a criança desenvolva o sentido de intimidade, de confiança, do que é o compartilhar com o outro, de importar-se com o outro, e de tornar-se, por consequência, um ser social. A amizade deve começar dentro de casa, na relação dos pais com os filhos, da família com a criança. Essa relação será o modelo que a criança usará para estabelecer todos os seus outros vínculos, sejam amores ou amizades. Quanto mais forte for esse vínculo (e isso é bem diferente de pais e mães que querem manter seus filhos atados a eles como se não pudessem ter vida própria), mais estrutura ele dará para a criança estabelecer seus demais laços na vida. Um vínculo é forte quando ele é verdadeiro, íntegro e respeita a individualidade e a intimidade de cada um.
Folha – A internet é boa ou má para as relações de amizades que existiam sem ela?
Dra. Ana Claudia – A Internet não é por si só “boa” ou “má”. Ela é um canal de acesso a um mundo de oportunidades, e traz mais uma ou várias possibilidades para nos relacionarmos, conhecer pessoas, e manter contato com diferentes povos, temas e assuntos que de outra forma não teríamos acesso. Dependendo de seu uso é que ela se tornará boa ou má, pois esse uso é que determinará as consequências, que poderão ser boas, más ou neutras na vida de uma pessoa.
As amizades que existiam antes dela, podem continuar a existir, e isso só depende de quem está envolvido na relação. A amizade precisa ser cultivada como uma plantinha. Caso contrário, ela morre.
Penso que a internet traz a possibilidade de se criarem laços de amizade que não poderiam talvez existir sem ela, simplesmente pela facilidade de acesso que ela proporciona. Agora, manter esse vínculo ou não é tarefa e escolha de cada um.
Folha – É possível ter um relacionamento de amizade saudável somente a partir das salas de bate-papo ou dos sites de relacionamento?
Dra. Ana Claudia – As salas de bate-papo e os sites de relacionamento são portas de entrada. Uma vez que você entre, você pode decidir ficar ou não. O que quero dizer com isso é que elas oferecem oportunidade de conhecermos pessoas diferentes, dos mais diversos lugares do mundo. Principalmente para os mais tímidos, que tem medo de se expor, ela é de grande ajuda. Mas se o relacionamento só fica na sala ou no site, dificilmente ele irá durar ao longo do tempo e, daí, penso que não podemos dizer que se trate de uma amizade realmente. A amizade pede investimento, constância, cuidado e intimidade. Na Internet há como se ter intimidade virtual somente, mas não real.
Folha – E o Orkut? Existem pessoas que exibem mais de 500 amigos em seu perfil…
Dra. Ana Claudia – O Orkut é outro fenômeno interessante dessa nova era. Na verdade, penso que as principais questões que envolvem o sucesso e o problema do Orkut são três: A primeira questão está ligada ao sentimento de pertencimento e aceitação, ou seja, se você vai ser “autorizado” a entrar para o clube (que de privado não tem nada, pois tudo é exposto a quem queira bisbilhotar) ou não, uma vez que você só entra se tiver algum amigo que o convide; a segunda questão está ligada ao quão social e sociável você é, classificando-se dependendo da quantidade de “amigos” que você for autorizado a incluir na sua “rede”, o que pode ser extremamente falso e em geral é, pois ninguém consegue abarcar 500 amigos sem falhar muito com a maioria deles; além disso o outro se interessa em virar seu “amigo” pois isso também aumenta a rede dele e ele então torna-se mais sociável e bem quisto na “rede” também; e a última questão é o intuito de bisbilhotar a vida alheia: saber se aquele ex-namorado já se casou, se sua ex-mulher já tem outros filhos, se sua paixão não correspondida de adolescência ainda está solteira por aí, se sua amiga ainda se relaciona com aquela outra pessoa que você não pode nem ver…e por aí vai…
Mas falar em amizade de verdade nesse tipo de ambiente é quase impossível. O Orkut, como tantos outros sites de relacionamento e chats, serve para aplacar a dor da solidão. O grande problema é que todos esses artifícios, como o próprio nome diz, só servem de muleta para que a pessoa não se dê conta de sua imensa tristeza e vazio interior, e não enfrente seus medos na busca de uma amizade ou relação amorosa de verdade.
Folha – Espaço para considerações sobre o assunto…
Dra. Ana Claudia – Gostaria de terminar essa entrevista citando um trecho que li outro dia no jornal quando comentavam o livro “Amor líquido” do Zygmunt Bauman e que fala um pouco sobre essa questão da Internet e dos sites. Diz assim: “quanto mais próximo é um relacionamento, mais ele parece ao mesmo tempo uma promessa e uma ameaça. Não admira que uma “rede” possa parecer uma alternativa sedutora aos laços. Em uma rede, como você sabe, desligar-se é tão fácil quanto ligar-se”.
Matéria veiculada no jornal Folha da Cidade na edição do dia 13 de abril de 2007.
Redação: Aline Pasin (MTB 41.456)
*Ana Claudia Ferreira de Oliveira é Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Psicanalista em São Paulo.