Ele entra naquele recinto escuro e logo se senta à mesa que já está composta por outros colegas. O baralho corre de mão em mão. As apostas começam singelas, mas chega num ponto em que o frenesi do desafio toma conta dos jogadores e a aposta passa a ser sinônimo de loucura. Jogos de azar são mesmo tentadores e traiçoeiros, pensou aquele homem de meia idade que havia acabado de se sentar à mesa. Enquanto pensava, ao mesmo tempo, mais uma parte de sua vida de trabalho ficava na mesa de jogos. Aquele homem que entrou com tanto na sala acabava de perder outro tanto em um segundo. Sorte de quem ganhou, azar de quem perdeu.
Essa história é fictícia, mas acontece em todos os cantos do mundo levando famílias a situações econômicas precárias e jogadores ao desespero. Não são somente as drogas lícitas e ilícitas as únicas capazes de viciar.
Na última reportagem da Série Especial sobre Vícios, a Nova Regional/Folha da Cidade traz uma entrevista com a psicóloga Ana Cláudia Ferreira de Oliveira que explica que o jogo pode ser patológico quando atinge a qualidade de vida dos jogadores. Confira:
Folha da Cidade – Vemos que para muitas pessoas, na maioria homens, o vício por jogos acaba sendo prejudicial à sua vida. Por que isso acontece?
Dra. Ana Cláudia Ferreira de Oliveira – O vício por jogos está dentro do que chamamos, na psicologia e na psiquiatria, comportamentos compulsivos ou aditivos. São comportamentos que acontecem repetidamente e com muita frequência, e dos quais a pessoa parece não conseguir se livrar. São como hábitos aprendidos e que são realizados em busca de alguma gratificação emocional, normalmente em busca de prazer ou de alívio do desprazer, como, por exemplo, alívio de ansiedades ou angústias excessivas. Apesar da maioria dos estudos sobre jogadores compulsivos ou patológicos ser dirigido a uma população eminentemente masculina, calcula-se que pelo menos um terço deles sejam mulheres.
Folha – Existem jogos amistosos, mas sempre são os que envolvem dinheiro os que mais chamam a atenção da pessoa viciada em jogos. Como isso pode ser explicado?
Dra. Ana Cláudia – A pessoa que realiza o jogo compulsivo ou patológico normalmente está mais em busca de “ação” que o dinheiro especificamente, e por causa dessa busca desenfreada por emoções cada vez mais fortes, ela tende a realizar apostas cada vez mais altas.
Folha – Quais sensações levam a pessoa a continuar jogando, mesmo sabendo que pode perder?
Dra. Ana Cláudia – Quanto mais o risco de ganhar ou perder aumenta, mais ela chega próximo ao nível de excitação desejado. E isso é uma busca sem fim, porque ela sempre vai precisando de mais e mais. Normalmente, essas pessoas não se satisfazem com o ganhar uma rodada, pois a busca está em manter um nível de excitação que as livre de suas angústias ou ansiedades. Só que o que acaba acontecendo, no final das contas, é um aumento do nível de angústia, além da sensação de falta de autonomia, porque não conseguem parar de jogar.
Folha – Desde a infância as crianças são induzidas a participar de jogos. Até que ponto isso é saudável ou pode fazer com que a criança crie a dependência por determinado jogo quando adulto?
Dra. Ana Cláudia – Os jogos e brincadeiras são estimulantes do crescimento infantil e do desenvolvimento do raciocínio lógico, da estratégia, do trabalho em equipe, da capacidade de integração social, e devem fazer parte do desenvolvimento normal de qualquer criança. A criança que não joga e não brinca não desenvolve a capacidade de simbolização e não pode experimentar o exercício da fantasia e da criatividade, tão importantes para a sua saúde psíquica.
Folha – Quando a pessoa que rotineiramente participa de jogos deve começar a se preocupar para que não ‘se vicie’ naquele ato?
Dra. Ana Cláudia – O jogo é um brincar. E é importante tanto para a criança como para o adulto saber brincar na vida, se permitir brincar, imaginar, fantasiar. Os jogos estimulam várias funções mentais e ajudam a criar um espaço fora da realidade concreta que traz alívio para quem joga. É o momento lúdico, o momento da brincadeira.
O jogo patológico é bem diferente de um jogar normal. Ele pode vir a tornar-se não só uma grande fonte de prazer, como talvez a única na vida dessas pessoas. O jogo patológico é uma doença que envolve, normalmente, dinheiro ou outros bens, e em quantias altas, pois o jogador compulsivo costuma se tornar inconsequente, gastando aquilo que não tem, perdendo a noção de realidade. Quem simplesmente joga pelo prazer da brincadeira não precisa apostar dinheiro. Quando o dinheiro começa a entrar em questão e o jogar parece ser a única fonte de prazer na vida de alguém, pode-se começar a ter mais cuidado com o comportamento da pessoa.
Folha – Em muitos casos, as pessoas viciadas em jogos só de dão conta de que sofrem algum tipo de dependência psíquica do jogo depois que perdem grandes quantias em dinheiro. Há tratamento para este tipo de dependência? Qual?
Dra. Ana Cláudia – As pessoas com jogo patológico frequentemente continuam jogando, apesar de repetidos esforços no sentido de controlar, reduzir ou cessar o comportamento. Há um reforço emocional no jogar. Quando a pessoa ganha, temos um reforço positivo imediato, mas o perder é “apenas” uma circunstância aleatória para o jogador compulsivo. Ele estará sempre na expectativa de ganhar. Além disso, a sensação de risco que envolve o jogador faz com que ele passe a repetir o comportamento, gerando a dependência.
Com relação ao tratamento, temos ainda poucas referências na literatura médica a respeito. Já existem no Brasil alguns Grupos de Jogadores Anônimos, mas a aderência a esse tipo de tratamento ainda é muito baixa. Outras opções são as terapias individuais ou em grupo. Muitos serviços de psiquiatria em ambiente universitário, como o da UNIFESP em São Paulo, têm se utilizado de psicoterapia de grupo, no intuito de auxiliar o jogador a sair do isolamento em que se encontra. As terapias familiares também podem ser indicadas com o propósito de implicar toda a família no contexto e no tratamento da doença daquele membro.
Pode acontecer também que haja transtornos afetivos associados ao jogar compulsivo, como depressão, transtornos de ansiedade, de humor, e dependência de álcool e drogas. Nesses casos, o tratamento com medicação psiquiátrica, tais como antidepressivos, está indicado.
Folha – Quais dicas a doutora dá para os familiares de pessoas viciadas em jogos?
Dra. Ana Cláudia – O caminho para o tratamento é, principalmente, reconhecer o problema e isso não é tão simples, primeiro porque o jogador compulsivo tende a esconder sua dependência. Depois, ele dificilmente reconhece a gravidade de seu comportamento, mesmo quando os outros o avisam do perigo. E, por fim, porque a própria família tem dificuldades de enxergar o problema tal como ele é, e normalmente a situação caminha até atingir um ponto onde se torna insustentável. O mais importante é que a família não seja conivente com seu comportamento.
Nossa sociedade não está habituada a considerar o jogo patológico como uma doença. E isso é reforçado diante do fato do jogador se apresentar como uma pessoa psiquiatricamente normal no geral. É preciso tomar muito cuidado com um discurso que engana e pretende justificar o comportamento do jogador e que a própria família às vezes sustenta, alegando que por eles trabalharem tanto e serem bons pais ou maridos, eles teriam direito a um pouco de lazer na vida. O lazer tem que trazer prazer e não mais desprazer e problemas para a família.
Em São Paulo, há o Ambulatório de Jogo Patológico da UNIFESP que pode ser um local de referência para os familiares que precisarem de mais informações: Proad – Unifesp/EPM, que fica à Rua dos Otonis, 887 – Vila Clementino – CEP 04025-002 – São Paulo/SP. O telefone é (11) 5579-1543.
(fonte: Jornal Folha da Cidade – Tietê – SP. Edição de 25/11/2005. Redação: Aline Pasin, jornalista)